terça-feira, 22 de março de 2011

Entrevista a Gustavo Fernandes por Nídia Faria

Gustavo Fernandes tem quarenta e seis anos, é autodidacta e um mestre na arte surrealista e hiper-realista. Com um pé no Canadá e outro em Portugal, já era pintor muito antes de iniciar a sua formação na área. Chegou a frequentar a Escola de Belas Artes em Montréal, bem como o programa de Artes Plásticas e Gráficas de Dawson College. Porém, foi do retratista Francisco de Oliveira que recebeu a inspiração de que realmente precisava. Pintor de profissão, escultor de alma, Gustavo Fernandes estreia-se na AZO com mais uma mostra provocadora e audaciosa.

“A emoção é mais importante para qualquer pintura do que contar uma história.”

O artista recebeu-nos no seu atelier, um espaço rico em luz e arte, improvisado no rés-do-chão da sua vivenda. Aí, um arco-íris de tintas se mescla em cada palete e de cada obra transpira a inspiração surrealista. Aos dezasseis anos foi viver sozinho para o Canadá e entregou-se ao desenho e à pintura, tendo a sua primeira exposição o sabor de um Abstraccionismo experimental. Na faculdade aperfeiçoou a sua técnica e rendeu-se ao Surrealismo. Hoje, admite conceber uma arte algo esquizofrénica, que viaja entre o surreal e o hiper-real. O contemplador é seduzido pela beleza das paisagens, das ruínas e do corpo feminino. Num jogo de véus e cortinas, o pintor esconde o rosto humano ou mascara-o com um focinho animal. Prefere pintar emoções e sensações em vez de histórias, psiques em vez de identidades. Perito na arte da imaginação e com um cativante poder de sugestão, Gustavo oferece ao público uma mostra artística provocadora que ficará na AZO até dia quinze de Abril.

1. Pinta há quanto tempo?

Nunca deixei de pintar, desde que me lembro. Desenho desde criança. Fiz algumas pausas, mas desenhei sempre. Posso dizer que comecei oficialmente a pintar por volta dos dezasseis anos. Pintar era a minha profissão.

2. Como é que isso aconteceu?

A minha família foi para o Canadá, tinha eu onze anos. Quando os meus pais voltaram para Portugal, levaram os seus três filhos mais novos. Eu era um deles. Só que estivemos lá cinco anos, e quando regressei a Portugal não quis cá ficar. Estive só um ano e depois regressei ao Canadá, sozinho. De início a ideia não agradou aos meus pais, mas acabou por ser assim e naturalmente a aceitação veio a seguir.


3. Conseguia sustentar-se já com essa idade?


Muito mal. Fui para uma moldureira trabalhar, mas estive lá pouco tempo. Depois comecei a tentar sobreviver da pintura. Tive alguma sorte.

4. Por essa altura estava no secundário? Em artes?

Em Portugal eu andava no American International School. Naquela altura gostava mais de pintar do que de estudar. Já em Montréal terminei o liceu e ingressei na faculdade para poder fazer os cursos que me interessavam, de artes. Mas já pintava muito e já expunha.

5. Não teve receio de se dedicar só à pintura? Pintar tanto pode dar sustento como não… Depende-se do talento, da sorte…

Naquela altura eu não tinha medo de nada, primeiro, e depois nem pensava nisso. Fazia aquilo que me apetecia, basicamente. Seguia muito o meu instinto. Completamente. E pintava simplesmente porque tinha aquela necessidade de pintar, de esculpir e de fazer coisas diferentes.


6. E começou com o Realismo, ou atreveu-se logo a experimentar o Surrealismo?

Não, eu comecei com o abstracto. Comecei a experimentar tintas, texturas. Eu nem sequer estudava outros pintores, não tinha influências nenhumas de fora, de escolas, de nada. E daí haver talvez uma faceta na minha pintura muito abstracta e muito própria.

7. Só quando entrou para Belas Artes na faculdade é que começou a ganhar referências e a ter pintores preferidos, não?

Sim, e comecei a melhorar o meu trabalho e a tornar a coisa mais séria, a tentar fazer exposição com mais coerência, com mais conteúdo. Fui muito influenciado por Salvador Dali, por Francis Bacon, por Miguel Ângelo, e por Goya, também. Hoje em dia já não posso dizer isso, porque tenho influência de pintores que ninguém conhece - ilustres desconhecidos hiper-realistas. Sigo os seus trabalhos e as suas técnicas pela internet e tiro ideias… Tento fugir às referências mais universais e ter um trabalho muito próprio, mas há sempre, quer queiramos quer não, influências, nem que sejam no subconsciente, que nos levam a fazer determinado tipo de trabalho. O Hiper-realismo (foto-realismo), para mim, é uma influência forte, embora eu esteja neste momento a tentar fugir um bocado a isso por ser uma técnica muito trabalhosa. No fundo, há uma espécie de esquizofrenia no meu trabalho. Eu sempre misturei hiper-realismo e surrealismo. Gosto muito de fazer as duas coisas: desenhar a realidade e transformar a realidade.

8. Pode-se dizer que se formou em desenho e pintura, essencialmente?


Não. Eu diria que sou autodidacta. Completamente. Acho que até aprendi mais com os alunos do que com os professores. O que me chamou mais à atenção foi perceber em que mundo é que eu me estava a inserir. Não foi propriamente a técnica da pintura ou os temas. Foi mais o negócio da arte. Que mundo é este e como vai ser no futuro.


9. Enquanto trabalha, em que ambiente se concentra melhor? Precisa de silêncio, de música ambiente, prefere estar sozinho, acompanhado, fora de casa, dentro de casa?


Dentro de casa, absolutamente. Muita luz, absolutamente. Gosto de estar sozinho, mas também gosto de estar acompanhado, porque isto é uma profissão muito solitária, mais do que parece. Gosto muito de trabalhar com música, mas há momentos em que prefiro o silêncio. Acho que a música tem de ter a ver com aquilo que estamos a pintar no momento. Preciso de música boa. Gosto de Jazz, mas não para pintar. É pouco rítmico. Com reggae já consigo, e gosto.

10. Aposta mais na pintura do que na escultura. Porquê?


Isso tem uma razão de ser… Eu adoro fazer escultura. Se calhar até mais do que pintura, só que o meu mundo sempre foi mais dedicado à pintura, e a escultura tem um grande inconveniente. Tem sempre um investimento muito grande por trás. E, se corre mal, lá vai o trabalho todo ao ar. Depois, a parte comercial torna-se complicada, porque as galerias levam comissões, a produção da escultura demora, bem como todo o trabalho envolvido, e, quando chegamos ao fim, o lucro que podia dar uma peça de escultura é reduzido em comparação à pintura. E eu tenho de ter sempre essa componente em conta, porque eu vivo disto, não é? Infelizmente faço pouca escultura.


11. Quando é que a escultura deixou de ser um hobby? E a fotografia? Encara-a como um hobby?


A fotografia nem posso considerá-la um hobby. Eu não sou fotógrafo, nunca me dediquei a isso a cem por cento. Quanto muito, utilizo a fotografia para trabalho, como referência para a pintura. A escultura deixou de ser hobby. Faz parte da minha obra. Eu sempre fiz uma escultura ou outra durante a minha carreira, mas só há dois ou três anos para cá é que comecei a fazer escultura a sério. Sempre tive essa paixão, mas não me dei ao trabalho porque estava sempre ocupado a pintar. Um dia, decidi. Quando fiz a minha primeira escultura a sério cheguei à conclusão que era mais fácil para mim esculpir do que pintar. Eu devia era ter sido escultor toda a vida! Preferia. Tenciono inclusive fazer mais escultura e menos pintura. O problema é que toda a infra-estrutura do atelier está preparada para a pintura. Suja muito, requer máquinas, é complicado.


12. A propósito, existem duas telas na corrente exposição onde pintou a boca de uma mulher a morder uma sardinha - uma delas a cores e a outra, suponho, a grafite. De onde lhe surgiu a inspiração para tal obra? Gosta de sardinhas?


Por acaso não gosto! Eu explico. A modelo já tinha feito uma fotografia anterior para uma pintura que eu fiz, em que ela estava a morder uma uva - essa obra era para a tal exposição no museu do vinho da Bairrada -, e ela tinha uma boca muito sensual. Eu achei curioso tentar fazer um contraste entre uma coisa sensual e uma coisa repugnante, que é a sardinha crua. A modelo teve mesmo de morder a sardinha para a fotografia. Fizemos umas cento e tal fotos em duas horas.

13. Sei que dá aulas de pintura neste atelier. Quando é que começou a ensinar?


Comecei a dar aulas em 1991. Dei aulas durante uns tempos e depois parei. Precisava de tempo para mim. Agora, há pouco tempo, recomecei. Dou aulas aqui há cerca de um ano e meio, dois anos.


14. Gosta mais de pintar ou de ensinar?


Gosto de ambas, mas, se de facto tivesse de optar, seria pela pintura.


15. No dia da inauguração da sua exposição na AZO, explicou-me que as obras escolhidas não seguiam nenhum fio condutor por não pertencerem à mesma fase. Qual o motivo que o levou a escolher aquelas pinturas em específico?


Houve vários motivos. Um deles é que eles minimamente se enquadrassem uns com os outros, mesmo vindo de colecções diferentes. E há que ver que as obras não foram só escolhidos por mim, mas também pelo responsável pelas exposições de arte no espaço AZO e pela minha RP. A escolha partiu de um culminar de ideias.

16. O que pretende comunicar com a sua obra?


A verdade é que nem todas as obras têm de ter uma explicação lógica. É uma emoção que se pretende criar ou passar. Há obras que chamam a atenção, seja pela sensação de absurdo, seja pelo que for. A emoção é mais importante para qualquer pintura do que contar uma história.


17. Teve uma formação profissional sob a orientação do retratista Francisco de Oliveira…

Esse ensinou-me muito. Muitas coisas importantes..

17.1. E, contudo, desenha raramente o rosto humano. Tem uma presença muito feminina nas suas obras e é curiosa a forma como as retrata. Ou surgem sem cabeça, como que estátuas em ruína, ou o rosto é escondido por um véu ou por um objecto. Ainda assim, por regra, o artista atribui-lhe não um rosto mas um “focinho”, seja de gato, de serpente, ou de insecto. Porquê?

Eu não ponho o rosto nas figuras porque gosto de representar uma figura na sua psique e não na sua fisionomia. Ao esconder o rosto com um objecto ou ao alterá-lo com uma cabeça de animal estou a criar uma psique. Estou a fazer um retrato psicológico dessa pessoa. A borboleta, por exemplo, é uma criatura suave, inocente, gentil. A louva-deus já não é bem assim. É a mulher-carnívora. Mas as mulheres são um bocado assim. Consomem o homem. (risos) Já a mulher-gato é bela, mas ainda assim um bocadinho traiçoeira.

18. Teve uma fase em que pintava ruínas, esferas, árvores, e nunca pude deixar de sentir que jogava com a ideia da passagem do tempo… O que o atrai nesses símbolos? O que representam para si?


São peças mais antigas e algumas delas temáticas, feitas para exposições específicas. A minha obra está quase toda relacionada com a ecologia e o tempo. Eu sou fã de alguns crânios como o Einstein, com a sua teoria da relatividade, ou o Carl Sagan, com as suas teorias sobre o universo. A minha obra baseia-se um bocado nesses conceitos de tempo, de corrosão. Depois, tem a componente ecológica. Daí o céu, o mar, as árvores. O fogo também aparece, mas não quero dar uma carga negativa à minha obra. Não é esse o objectivo. Para além disso, sou um perfeccionista naquilo que faço e, para mim, a esfera e o cubo são duas formas perfeitas. Utilizo-as muito. Quando ponho o céu ou o mar dentro de um cubo ou de uma esfera, estou a chamar-lhe de perfeito. As ruínas fascinam-me. Simbolizam a passagem do tempo. As cortinas ou os véus representam o vento, o movimento do planeta. O mar sempre me fascinou. Adoro o mar. Também é movimento, e tem a ver com o início da vida. Já o corpo feminino é uma situação mais humana. Eu represento muito a ecologia, mas raramente insiro a figura humana. Se o faço, normalmente represento a mulher, porque o corpo feminino é realmente muito bonito e muito agradável de pintar.


19. Considera o Surrealismo uma corrente artística compreendida e apreciada em Portugal?


Não. Nem por isso. Aliás, Portugal é um país que está muito atrasado em relação à apreciação da arte em geral. A arte é uma coisa tão importante… Todos os objectos que nos rodeiam têm um componente artístico. Quantas pessoas se apercebem disso? Quanto à questão do Surrealismo, concretamente, dentro do mundo dos críticos e dos artistas, dos entendidos, em Portugal, que não são muitos, eu posso dizer o seguinte. A arte compreendida no país, neste momento, é muito abstracta, muito pouco realista, e é uma arte que é moda. Noutros países mais desenvolvidos artisticamente, como os Estados Unidos, a Alemanha, a França, essa arte já passou há vinte anos e já saiu de moda, e por isso já estamos no surrealismo outra vez. Portanto, estamos em atraso esses vinte anos na compreensão e apreciação artística.


20. Começou a expor em Montréal, Canadá, onde inclusive teve formação anos antes em artes plásticas e gráficas. Recorda-se da sua primeira exposição?


Sim, eu nunca mais me esqueço da minha primeira exposição porque foi totalmente organizada por mim, sem ajuda de ninguém. Eu virei-me do avesso para conseguir fazer aquela exposição. Tinha dezasseis anos e vivia em Montréal, num apartamento décimo segundo andar. Decidi fazer uma exposição e não tinha nenhuma galeria que me apoiasse. Pedi dinheiro emprestado a amigos para fazer as molduras, os convites, uma data de coisas. Depois pedi emprestada a sala de condomínio do prédio, montei uns focos nos pés das obras para ganharem uma luz mais interessante, arranjei umas placas de madeira pintadas de branco para segurar os quadros, porque não podia furar as paredes. Fiz uma exposição com trinta e tal obras. Convidei todas as pessoas do meu prédio e dos prédios em volta, deixei convites nas caixas de correio, convidei toda a gente que conhecia e vendi metade da exposição. Paguei as dívidas e ainda fiquei com dinheiro para fazer uma próxima.


21. Enquanto artista, quais as três palavras que melhor o definem?

Sou ousado, rebelde, mas não o suficiente. Devia ser mais. E controlado naquilo que faço.

22. Qual a sua definição de arte?

A arte não se define. É simplesmente arte.

23. Quais os seus planos para o futuro próximo?

Tenho uma exposição marcada para Janeiro de 2012 no Palácio do Egipto, em Oeiras. Esta exposição vai ter uma componente interessante que é ser dedicada a figuras que mais marcaram a Humanidade, seja pelo positivo ou pelo negativo. Tenho uma exposição na Galeria Galveiras com uma temática mais ecológica a 28 de Abril, na Rua do Alecrim. Também tenho outra no Turismo de Sintra, em Julho.

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