quarta-feira, 9 de março de 2011

Entrevista a Rui Carruço por Nídia Faria


É a corrente exposição de pintura de Rui Carruço que colore as paredes da galeria da AZO, em Alfragide. Bancário e de trinta e quatro anos, dedicou grande parte das horas vagas a uma das suas grandes paixões: a pintura. O que começou por ser um hobby na infância e na adolescência catapulta-o hoje para um estatuto de reconhecimento da sua versatilidade enquanto pintor.

“A ARTE NÃO SE DEVE ESGOTAR NAQUILO QUE SE VÊ.”

Humilde, ousado e curioso, o artista fala sobre arte com um sorriso nos olhos. No secundário escolheu a área dos números, mas as telas nunca deixaram de fazer parte da sua vida. Para o artista, ter muito ou pouco tempo não é o mais importante, mas sim como se aproveita esse tempo. Carruço usa-o de forma equilibrada, dedicando parte à sua criação artística. Já expôs no estrangeiro, nomeadamente em Valência, Nova Iorque, Pequim e Varsóvia. Influências é o nome deste seu último trabalho em tela, que ficará exposto na AZO até a próxima sexta-feira, dia 11 de Março. Nesta, homenageia “os monstros consagrados” que influenciaram a sua vida pessoal e profissional, entre os quais se encontram poetas, dramaturgos, escritores, filósofos, arquitectos, escultores, pintores e músicos. Em entrevista, confessa-nos os trunfos que considera essenciais para qualquer artista que almeje ter sucesso: ser, através da sua arte, bom comunicador, provocador, orientador, e um dia, quem sabe, venha a tornar-se num ícone de motivação para as novas gerações.

1. Sei que desde muito cedo começou a pintar e a interessar-se pelo mundo das artes. Com que idade se lembra de perder mais tempo, em pequeno, com a pintura?

Eu acho que comecei como qualquer pessoa. Desenhando bonecadas e todas aquelas coisas que fazemos quando somos pequeninos, não é? Acho que todos passamos por isso. Depois, e de alguma maneira, há pessoas que desenvolvem um gosto adicional ou reforçado sobre uma determinada área. Assim, e dentro da minha formação artística, eu diria que sou maioritariamente autodidacta.
Se bem que a dada altura tirei um curso de desenho na Sociedade Nacional de Belas Artes, depois de gravura, em Lisboa, e um ano mais tarde viajei até Florença para tirar um curso de pintura renascentista. Somente depois, e há cerca de uns dez anos para cá, comecei a encarar a pintura como uma actividade profissional e a iniciar exposições.

2. Tirou dois cursos, nomeadamente de desenho e de pintura renascentista, e participou em vários workshops de artes plásticas. Nos dias de hoje, acaba por ser referido enquanto artista plástico. A que tipos de arte plástica se dedica nos dias de hoje?

Eu gosto da arte em geral. Hoje faço também escultura,  fotografia – embora não exponha - e pinto. Pinto muito! Que é aquilo que mais gosto de fazer. Contudo, para cada técnica existem processos criativos e técnicas de execução diferentes. Em escultura, se for por exemplo em pedra, podemos estar uma, duas, ou quatro semanas a dar vida a uma ideia. Numa pintura já não será bem assim. É de uma execução mais rápida, e, portanto, esgotamos mais depressa a ideia inicial e podemos partir para uma nova. Na prática, quando inspirados, conseguimos produzir mais depressa. Podemos fazer cinco ou seis quadros à mesma velocidade em que fazemos uma gravura ou uma escultura, e quem gosta de criar, gosta de estar constantemente a fazer muitas coisas novas.

2.1. Gosta de se demorar, de não ter qualquer pressa, ou prefere sentir um pouco a pressão de ter de criar, seja a convite de uma exposição, ou para alcançar uma meta pessoal?

Quando se fala da inspiração que os artistas acabam por ter, enveredamos por um caminho muito subjectivo. Creio que os artistas têm sempre diferentes fases. Há fases em somos muito criativos, e fazemos as coisas muito depressa, e há outras em que não nos sai nada. Portanto, eu acho que faz sentido haver alguma pressão, porque todo o artista, de certa forma, precisa de alguma autodisciplina e de se comprometer. Por exemplo, quando eu me comprometo com uma exposição, e resolvo fazer um tema, normalmente procuro alinhar-me com a dimensão da galeria. Se é uma galeria muito grande provavelmente posso produzir numa outra escala, fazer trabalhos de maior dimensão, ou com maior ou menor rapidez.

3. Já alguma vez criou uma colecção temática por sugestão de um galerista?

Às vezes acontece, o que pode não nos dar muito gozo, pois dentro da nossa criatividade gostamos de fazer aquilo que queremos. Por outro lado, também surgem coisas engraçadas que nunca me lembraria de fazer. Por exemplo, já fiz vários retratos a pedido de galeristas que se revelaram muito interessantes, isto porque, apesar de estar condicionado a um determinado tema, este foi um ponto de partida para se poder criar qualquer coisa.

4. Nesta sua exposição na AZO, Influências, também usou o retrato, mas num sentido algo abstracto ou ligeiramente surrealista.

Aqui o ponto de partida foi diferente. Recordo-me que lia um livro de Jean-Paul Sartre sobre a origem da nossa personalidade e as nossas tomadas de decisão. No final, senti necessidade de procurar as minhas principais influências, e, de alguma maneira, perceber também como estas se repercutiram em mim e na sociedade. Portanto, o título do tema é Influências porque eu procuro mostrar quais foram os monstros consagrados que influenciaram e influenciam a minha face artística. Mesmo a nossa personalidade resulta de um conjunto de influências, que podem partir dos nossos pais e das nossas companhias, bem como de referências com as quais nos identifiquemos. Assim, e sendo eu muito ligado às artes, à literatura, à filosofia, à psicologia e à física, acabam por aparecer todas essas personagens que, de alguma maneira, quis destacar dentro dessas áreas. No limite poderei dizer que se tratam de personagens que se transcenderam a elas próprias!

5. Apesar da sua paixão pela arte, decidiu-se por ciências no secundário e por economia na universidade. A pintura continuou a estar presente na sua vida?

Claro que ela continuou presente! Aliás, quando se gosta de arte, ela está presente em tudo, quer faças economia, quer sejas cozinheira. Naturalmente que existem certas áreas, como a publicidade, que têm uma relação directa com as artes. Mas seja como for, em qualquer área, ser-se criativo faz toda a diferença – e a economia não é excepção.

6. O que é que lhe fez escolher economia e não artes?

Eu sempre fui apaixonado por números. Apesar de, infelizmente, não ter tido tempo para apresentar aqui duas figuras ligadas á área: Newton e Einstein. Esse último chegou a ser feito mas não concluído. Deu-me alguns problemas e acabei por não o expor. Ainda assim, a essência da matemática, dos números, essa parte abstracta do raciocínio é fantástica e podemos descobri-la em tudo. Nos trabalhos de Leonardo Da Vinci, por exemplo, que, para quem não sabe, era um matemático exímio, e podemos confirmar isso através do seu legado, como o das medidas dos corpos, das proporções. Acredito que todas as áreas acabam por estar interligadas, de uma maneira ou de outra.

7. O que é arte para si?

Essa é daquelas perguntas que… Bom, já foram escritos livros sobre o tema que nunca mais acabam. A arte não é fácil de definir. Eu diria que é tudo aquilo que provoque os sentidos. Tudo aquilo que, de facto, não seja indiferente e comunique com as pessoas, provocando reacções. Quando a arte deixa de provocar, estará porventura banalizada, e estando banalizada já não é arte. Isto pode ser observado na literatura, na pintura, na escultura, na música, enfim…

8. O Rui é muitas vezes mencionado em entrevistas e em espaços de informação como um artista plástico. Hoje, considera-se essencialmente um artista plástico, um escultor ou um pintor?

Um pintor.

9. Um pintor ou um bancário?

Um pintor.

10. Como distribui o seu tempo para cada uma das suas profissões?

Trabalho nas duas áreas, para determinados projectos e em coisas muito específicas. É uma questão de organização e de foco. Acho que as coisas, para se regerem bem na vida, nunca têm a ver com a quantidade mas com qualidade, com o nosso empenho e dedicação. Portanto, a questão muitas vezes não passa pela quantidade de tempo que se tem disponível, mas pela forma como empregamos esse tempo.

11. Sente que uma das suas facetas profissionais tem um maior peso na sua vida, ou elas estão tão equilibradas quanto o tempo que lhes dedica?

Vivem em equilíbrio, até porque quando sentir algum desequilíbrio tenho de fazer alguma coisa para o repor novamente. Tal como tudo na vida, há sempre uma dualidade – neste caso, vantagens e desvantagens –, mas o facto de a minha fonte de rendimentos não advir somente da pintura não condiciona a minha arte à necessidade de vender, o que, muitas vezes, acontece a muitos colegas meus. Há, pois, situações em que é necessário fazer “pintura mercenária” e ceder ao que é vendável em detrimento da “pintura criativa” – ou seja, aquilo que nos apetece fazer!

12. Em qual dos dois mundos se sente mais realizado?

Aaah, eles complementam-se. As pessoas às vezes não sabem, mas o próprio Matisse era advogado, o próprio Van Gogh chegou a ser padre. Quero dizer, de uma maneira geral, todos eles acabaram por ter uma parte desconhecida que influenciou, em parte, a forma como compreendiam o mundo e o transmitiram, mais tarde, na sua arte.

13. Quando é que a pintura passou de hobby para algo mais sério?

Eu acho que é um caminho inevitável! Quando se pinta, começamos mais tarde ou mais cedo a encaramo-nos como pintores e ficamos definitivamente ligados a esse mundo. Quando isso acontece, estabelecemos amizades. Depois, como resultado dessas amizades, surgem convites para participar em exposições colectivas, ou seja, há sempre alguém que organiza uma exposição, seja temática ou não, e que nos convida. A minha primeira, recordo-me, teve por tema o Elvis Presley. Na altura ganhei até uma menção honrosa. Foi engraçado. Eu aceitei, empenhei-me, e tive dois ou três meses para fazer coisas alusivas a esse tema. Terá sido em 2001 ou 2002. E, depois, tudo acontece. Vamos à inauguração da exposição e conhecemos outros artistas, fazem-se amizades e surgem convites. Portanto, a pintura foi gradualmente tornando-se em algo mais sério.

14. Foi apanhado de surpresa pelo sucesso ou estava à espera de o conseguir?

A arte, nesse aspecto, é muito tramada, porque a maior parte das pessoas associa o êxito às vendas, ou mesmo às galerias onde se expõe. No final do dia creio que não é bem assim. A pintura nisso pode ser ingrata. Por exemplo, podemos sempre ir buscar algumas referências, efectivas, de pintores que viveram sempre muito mal, até serem reconhecidos, não é? A questão de se ser bem sucedido e de nos dar prazer tem de ser algo individual. Tenho de me libertar, de me superar e de me sentir realizado naquilo que faço, independentemente daquilo que me rodeie. (Apesar de o reconhecimento ser necessário, o principal é superarmo-nos e gostarmos daquilo que fazemos. A questão das pessoas gostarem tem de ser uma derivada e não um objectivo, senão é quase como construir a casa pelo telhado, não é?

15. O público tem reagido e aderido bem à sua arte?

Eu sinto que sim. Embora gostasse de ter mais oportunidades para discutir os meus trabalhos com as pessoas. Acho muito importante essa parte. E quando enveredas por uma arte abstracta e simbólica, como é o caso dos quadros desta exposição, mais sentido faz divulgar esse conhecimento. No limite, um quadro é a extensão de quem está a observá-los. Isso é o giro da pintura abstracta, porque discutimos os quadros, partilhamos ideias e começamos a decidir o que é que nos transmitem, e isso deve complementar a pintura. A arte não se deve esgotar naquilo que se vê. Daí definir a arte enquanto provocação.

16. Já expôs fora do país?

Sim, já fiz algumas exposições internacionais, nomeadamente em Nova Iorque, Pequim, Valência, Varsóvia… Uma exposição muito gira, essa última. Foi organizada pela embaixada portuguesa. Recordo-me de que um amigo meu da Fundação Cervantes lançou-me o desafio de expor aí uns trabalhos. Depois descobri que as embaixadas estão muito ligadas à parte cultural, o que é muito interessante. Na altura fui com mais dois pintores, e fomos os primeiros artistas portugueses a expor depois da passagem da Polónia à União Europeia.

17. Bebe um pouco dos vários movimentos artísticos de vanguarda do início do século XX. Na sua pintura parece reunir, nomeadamente, tendências do impressionismo (com o jogo de luzes e cores agressivas, as pinceladas grossas), do surrealismo (com as figuras que ora flutuam, ora repousam no horizonte ou no vazio, não existindo exactamente um contexto ou uma orientação espacial, mas uma sugestão através das cores), e mesmo do cubismo (há certos quadros onde parece reduzir os objectos às suas formas geométricas elementares – como sucede com algumas representações de árvores). Como classificaria o estilo que utilizou nestes quadros, em exposição na AZO?

É difícil fazer encaixar a minha pintura num desses movimentos relativamente regulados. No impressionismo não, pois, por defeito, não existe a noção de linha mas cor, não é? Há impressões de luz. Já o surrealismo, por sua vez, parte de algo que não é racional, do subconsciente. Está muito associado a sonhos. Por outro lado, o cubismo é normalmente associado à geometria. Na prática, olhamos hoje em dia para qualquer pintor e eu diria que é impossível não encontrar na sua arte a influência de todos esses movimentos. Eu já discuti com muitos artistas o tema e quase todos dizem ser impossível inventar uma corrente nova. Está tudo tão explorado, não é?

18. Ainda assim, o Rui criou para si uma forma de expressão artística em pintura – o Sinuosismo. Em que consiste?

A definição “Sinuosismo” surgiu numa brincadeira de um amigo meu, que é professor de literatura, e que eu resolvi manter por achar piada. Ele acabou por pegar no cubismo como eu o trabalhava, nas minhas linhas curvas, nos corpos e nas formas orgânicas, e isso, de alguma forma, é sinuoso. Aliás, quase tudo na vida são mais curvas do que rectas, e ele definiu-me por essa palavra nessa fase.

19. Em três palavras, como se definiria enquanto artista?

Eu hoje acho que sou um artista que, à sua maneira, procura transmitir um conjunto de ideias, de percepções e de mensagens através da pintura. Sou um comunicador. Acho que um quadro tem de comunicar, e, quando conseguimos influenciar ou contagiar alguém, é uma vitória. Por outro lado, quando pinto, o objectivo muitas vezes é por as pessoas a ver as coisas por outra perspectiva – da minha! Nesse sentido, considero-me também um provocador. E, talvez, um orientador. Gosto de acreditar que estes quadros procuram de alguma maneira ajudar as pessoas a ter uma visão mais equilibrada das coisas. É como digo, tudo tem dois lados, e muitas vezes somos taxativos na análise das coisas, ou seja só vemos um deles. Eu gostaria de ser um motivador. Quando o conseguir, estarei de facto realizado.

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